quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Diário de um Paraguaçu


Saveiro no rio Paraguaçu. Foto: Lorena Morais


Nasci lá das bandas da Chapada Diamantina, num lugar chamado Serra do Cocal. Fiz todo um percurso de curvas, idas e vindas, grandes encontros até chegar ao Recôncavo, um território de boas energias e que me acolhe muito bem. Na verdade me encantei por um vale. Vale que leva meu nome e que abriga as duas cidades mais expressivas e que me fizeram famoso até fora do Brasil! 

Meu nome é de origem indígena e retrata bem o que sou: “mar grande” de água doce. Sou o Paraguaçu, o rio que corta a heróica Cachoeira na margem direita e sua vizinha irmã São Félix, à margem esquerda.

O caminho é longo até chegar ao mar. Passo por diversas comunidades ribeirinhas que fazem de mim seu alimento e ganha pão: Nagé, Coqueiros, Maragojipe, Santiago do Iguape e tem também São Francisco do Paraguaçu. Por esses lados de tudo dou: caranguejo, peixe e marisco... De vez em quando até camarão, que tem que ser na época certa, pra não acabar com a família. O pescador sai cedinho no balanço da maré e marisqueira sabe bem a hora de meter a mão no mangue e tirar a ostra. 
Marisqueira. Foto: Marília Marques

Na minha margem tem engenhos, igrejas, fortes e casarios da época colonial, que retrata a história de um Brasil de outrora colonizado por Portugal. 

Tenho a proteção de duas mães, a Iara e Iemanjá, porque minhas águas se misturam num emaranhado doce e salgado da vida.

Meu braços são longos, vários afluentes por aí navegam para dar água a quem lava roupa ou pra carregar na cabeça o balde quando água falta.

Mas também já causei algumas tristezas. Por duas vezes São Pedro esqueceu a torneira do banheiro aberta e a água caiu toda aqui embaixo. Não consegui dar conta e foi água pra tudo quanto é lado. Dona Maria perdeu os móveis, entrou água na venda de seu Evandro e Banzé ficou sem ir a escola. Carmelita teve que ir correndo pra roça levar seu colchão na canoa. Mas Chico adorou ver aquela água toda e chamou a garotada pra subir no barquinho do seu pai, seu João, e ver o arco-íris.

Depois que construíram uma tal de barragem Pedra do Cavalo tudo mudou... e eu aprendi direitinho a cuidar do volume da minha água.

Quase me esqueço de contar que toda vez que olho pra cima me encanto tanto com a beleza das duas cidades que reflito em meu leito. Um moço, que também gostava muito das irmãs, decidiu unir as cidades construindo um linda ponte que levou o nome dele: Dom Pedro II. Cara importante esse aí, um rei que já navegou em minhas águas.
Ponte D. Pedro II sob o rio. Foto: Lorena Morais

Esse rio que vos fala já suportou grandes e importantes embarcações, pra levar carga de charutos lá para a bandas do Pacífico. Pra trazer e levar gente pra Baía - como era chamada Salvador. Para trazer alimentos, roupas, acessórios e abastecer os mercadinhos. O vaporzinho por muito tempo já navegou, e admirou a paisagem que sempre preparei para recebê-lo. Os pássaros cantavam, as ondas batiam nas pedras, a criança corria a seu encontro... 

Já sorri muito por tudo o que vivi, mas hoje choro porque não sou mais o Paraguaçu daquele tempo. Acho que esqueceram de dizer que rio não é lixeira, ou se dizem, as pessoas não se importam e continuam a me sujar com esgoto, latinhas de alumínio, garrafa pet, pneu velho, sapato furado... Estão desmatando a mata ciliar, tem peixe mudando de rio, tem gente acabando com o leito de meus riachos...  Às vezes meu odor é insuportável, mas não porque não me cuido, mas quem tem que cuidar de mim é você! 

Tem muita terra, ficou tudo raso, embarcações grandes não navegam mais por aqui... O vaporzinho esqueceu o caminho, “não navega mais no mar”, não navega mais no rio... 


• Esse texto foi publicado no jornal laboratório da UFRB Reverso Ecologia & Meio Ambiente nº 45

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